Foto: João Bonifácio Serra

Entrevista a João Bonifácio Serra, historiador e professor jubilado do Instituto Politécnico de Leiria

Por Dalila Garcia

João Bonifácio Serra aponta a cidade como “um reservatório de memórias” e que a sua valorização se faz através das pequenas celebrações dos saberes da comunidade. Sobre Vila Nova de Gaia, diz gostar de “deambular” e explorar as várias facetas do concelho. Historiador, professor coordenador jubilado do Instituto Politécnico de Leiria e autor de vários estudos da história política e social portuguesa contemporânea, foi assessor e chefe da Casa Civil do antigo Presidente da República Jorge Sampaio. Também foi programador e presidente da Fundação Cidade de Guimarães, Capital Europeia da Cultura em 2012. Em entrevista ao Vozes de Gaia, fala de cidades e da complexidade de que são compostas.

“A cidade alimenta os nossos mistérios.”

Em que medida a cidade onde nascemos e crescemos pode influenciar a nossa vida?
A cidade onde crescemos será sempre um reservatório de memórias. É por isso que, mesmo quando a nossa vida se desenrola noutras paragens, aquela é a cidade do nosso irmão gémeo (Orhan Pamuk descreveu a cidade onde nasceu como uma busca do seu duplo). A cidade alimenta os nossos mistérios. Revemo-nos nos segredos da cidade, de que acreditamos ter um conhecimento exclusivo. Porém, a experiência vivida noutra cidade, e até a visão de outros sobre a “nossa” cidade, pode ser reveladora e permitir-nos perscrutá-la de uma forma mais exigente e mais contrastada.

A frase é sua: “É importante que a arte encontre o seu lugar na cidade”. É a arte que tem de encontrar o seu lugar na cidade, ou a cidade que tem de encontrar esse lugar na arte?
A cidade convoca a arte para a celebração, a exibição de um certo gosto, o marketing e o consumo social. Quando disse que a arte tem de encontrar o seu lugar, questionava a aceitação daquele estatuto. A arte contemporânea reivindicaria uma forma crítica de estar na cidade: provoca, desafia, interpela. Propicia outras leituras. A arte torna-se parte da construção da cidade e não, como dizíamos nos anos 1960, mera imagem ou, como dizíamos nos anos 1960 da cultura burguesa, simples emblema na lapela. Por outro lado, ao enfatizar a necessidade de encontrar um lugar para a arte-cidade, estava a denunciar uma certa tendência para a festivalização quase generalizada entre as políticas artísticas e culturais urbanas. Uma cidade é criativa, não por ser por ser palco dos grandes eventos promovidos pelas grandes produtoras internacionais, mas pela montagem de iniciativas, as mais das vezes de pequena escala, que valorizam os saberes e recursos das comunidades, que se articulam com as escolas e as associações, que respeitam as memórias do lugar, que acumulam e legam competências locais.

A cultura é o parente pobre do Orçamento do Estado?
Não é só no nosso país. A parte pública do apoio às actividades criativas e culturais recuou em todo o lado, nas últimas décadas, sob pressão do neo-liberalismo. A criação artística e cultural foi enquadrada pelo paradigma das indústrias culturais e aprisionada por critérios como retorno do investimento, contribuição para o turismo, recurso económico, etc. Não foi só a arte e a cultura que se ressentiram desta ofensiva, mas também a educação.

Foto: João Bonifácio Serra

Se pudesse escolher, decidia viver em Vila Nova de Gaia? O que mais o motivava?
Poder escolher uma cidade para viver é um privilégio a que poucos têm acesso. Cada cidade é uma cidade particular e é todas as cidades. Acredito que é sempre possível encontrar numa cidade os traços de uma vivência que nos encanta e permite continuar a sonhar. Do que conheço de Vila Nova de Gaia, uma cidade compósita, marcada por diferentes espaços e em processo de mudança, há lugares onde gosto de deambular: as bordaduras do Douro – desde a Ponte do Infante até à Ponte Luís I e do Cais de Gaia até à Afurada –, a Afurada, o Cabedelo, o Parque da Quinta do Conde das Devesas com as suas camélias, e a Granja oitocentista. Mas também sempre me senti atraído pelas suas ruínas, nomeadamente as do passado industrial, onde avultava o complexo industrial da Fábrica de Cerâmica das Devesas.

A construção de uma ponte pedonal que ligasse Vila Nova de Gaia ao Porto constituiria uma mais-valia para as cidades? Em que medida?
Não estamos a falar de uma ponte meramente turística, pois não? Com margens tão próximas, as dinâmicas históricas das duas cidades que se desenvolveram na foz do rio são, em larga medidas, comuns. As pontes do Douro são todas pedonais, excepto a da Arrábida. Nesta, a pedonalização, embora prevista, nunca foi concluída do lado de Gaia, penso que por dificuldades técnicas. Talvez se pudesse retomar essa hipótese. Provavelmente, na cota baixa, uma ponte pedonal não será compatível com o tráfego fluvial. Eu costumo usar um substituto de travessia pedonal, o pequeno [barco] “Flor do Gás”, entre o cais de Lordelo e o cais da Afurada.

Qualquer cidade pode ser candidata a capital Europeia da Cultura? Ou tem de possuir características específicas?
Há responsáveis políticos de cidades que encaram uma candidatura a Capital Europeia da Cultura com a mesma disposição com que encomendam a elaboração de projetos a financiamento comunitário. Partem de um pressuposto completamente errado. O título de Capital Europeia da Cultura não é um ponto de partida, mas um ponto de chegada. É uma operação que permite capacitar as instâncias criativas e culturais da cidade, não é uma operação de marketing urbano. Um dia, já lá vão uns anos largos, um presidente de uma câmara convidou-me para elaborar um dossiê de candidatura da sua cidade ao título de Cidade Criativa da UNESCO. Em contrapartida, propus-lhe preparar com os actores das artes da cultura e da educação do seu concelho um programa de acção a dez anos. Só depois avaliaríamos os méritos de tal candidatura

Foto: João Bonifácio Serra

Antigamente, as crianças brincavam nas ruas. Essas cidades eram mais ou menos amigáveis do que as actuais?
Eram mais amigáveis. Eram menos segregacionistas, mais seguras e mais valorizadoras do espaço público. A massificação da cidade, o fim da cidade onde se vivia e trabalhava reconfigurou o espaço urbano e pôs fim á rua como espaço de vida. Não é possível voltar a esse tempo. A rua é agora espaço de circulação. A forma como as cidades proporcionam alternativas ao papel da rua na antiga cidade é um barómetro da qualidade do seu espaço público.

O turismo e a sua massificação têm contribuído para a descaracterização das cidades?
Há vários tipos de turismo e nem todos são predadores insaciáveis. Há um turismo que se preocupa genuinamente com a preservação, a sustentabilidade, o futuro da cidade. Esses visitantes das cidades são como os surfistas que querem voltar no ano seguinte e esperam encontrar águas límpidas, praias abertas e ondas naturais. Os cidadãos devem questionar-se sobre que tipo de turismo querem para a sua cidade e que tipo de troca estão disponíveis para efectuar com os que a visitam. Se só esperam que eles adquiram o “artesanato” proveniente de África ou da Ásia e consumam “produtos turísticos” massificados, não esperem cumplicidade e partilha dos visitantes.

“O planeta continuará a ser habitável? As cidades estão na primeira linha da resposta.”

A pandemia revelou muitas fragilidades estruturais das cidades. Que tipo de cidade teremos?
A cidade tem de ser encarada como uma peça fundamental da integração social, tanto dos que vêm de fora, como dos que nela vivem. Tem de oferecer tempo e não apenas velocidade, lugares e não apenas distribuição e consumo, encontro em vez de isolamento. Um dos maiores desafios é ético. Lidar com a fragilidade, lidar com a dissonância, saber escutar. Acima de tudo, pôr um travão no descartável, no desperdício de recursos e de gerações, na substituição e no frenesim da aceleração que a técnica e a ciência supostamente autorizam. O planeta continuará a ser habitável? As cidades estão na primeira linha da resposta. Tudo depende dos passos que derem. Mais do que fazer grande planos, é preciso avaliar os impactes das decisões. Só é aceitável fazer aquilo que é susceptível de reparação, como adverte o pensamento ecologista. Cuidar é também isso. Não sei que tipo de cidade nos reserva o futuro, mas sei que as decisões das cidades determinarão muito do futuro das espécies cujo destino nos é comum.