A Ponte da Amizade (ao fundo), símbolo de união entre Portugal e Espanha, com a obra Girl on the run em primeiro plano.

Diz a sabedoria popular que “o que é bom acaba depressa”. O segundo módulo do Vozes de Gaia durou três meses. A cada sessão, a cada três horas, sentíamo-nos mais capazes de compreender mensagens, mais sensíveis à comunidade, mais eficazes no uso da nossa voz, na nossa esfera privada e em Gaia. O que é bom acaba mesmo depressa, mas não termina aqui. Vila Nova de Cerveira, essa, é uma boa memória…

Por Eugénia Dias, Fernanda Maia e Florinda Sousa (texto e fotos)

Cerveira nasce como “Vila Nova”, em 1321, por Carta Foral de D. Dinis, com a construção do castelo para repovoar esta terra nas margens do Rio Minho. Com o crescimento da vila, o castelo também sofreu melhorias. Mas, com o passar dos séculos, foi igualmente perdendo a sua importância. Agora, abandonado, há uma proposta para tornar o Castelo de Cerveira num hotel de quatro estrelas. As obras orçadas em três milhões de euros estavam previstas para este ano, mas dada a incerteza do actual panorama político, económico e social, foram adiadas para data desconhecida.

Entrar no centro histórico desta vila de apenas 1400 habitantes é sentir história de reis, arte de mentes criativas, acolhimento das suas gentes. As casinhas vão nascendo nas ruas. As janelas são adornadas com cortinas bordadas, imaculadamente engomadas. As fachadas foram restauradas, mas não perdem os traços rústicos. Tudo tão detalhado que as flores são de todas as cores.

Ainda no centro, está edificado o Cineteatro de Cerveira e numa das paredes vive um mural com oito metros, de 2016, intitulado “Lacunas da Memória”, que evoca o escultor José Rodrigues. A obra, feita de terra, carvão e água, executada pelo brasileiro Elton Hipólito, foi premeditadamente colocada naquele local por se encontrar em frente à escultura “O Esforço”, do artista plástico português. O “mestre” é uma das figuras mais emblemáticas da vila, também por ter impulsionado as bienais de arte e pelo papel de director artístico na sexta edição.

Ainda em vida, o escultor viveu em S. Paio, num antigo convento franciscano, adquirido em adiantado estado de degradação. Decidido a recuperar o edifício e a torná-lo no seu atelier e museu, nele José Rodrigues deixou uma vasta colecção de esculturas, pinturas e desenhos seus, bem como de outros artistas. O Convento San Payo, outrora um local religioso, torna-se, na era contemporânea, num dos locais mais procurados pelos admiradores do escultor que, na década de 1970, nas muitas tertúlias que ali se realizavam, fez nascer muitos projectos.

Entre eles, a Bienal de Cerveira, em 1978, e que se tornou num dos eventos dedicados às artes plásticas mais importantes do país. Actualmente, o Fórum Cultural de Cerveira, edifício que alberga a Fundação Bienal de Cerveira acolhe as exposições “Por que te escondes nos arbustos negros?”, de Ana Torrie, o “Concurso Novos Artistas 2021” e “Novos diálogos no acervo”.

Mural colocado na parede do Cineteatro, de Juan Domingues, que retrata o artista Henrique Silva.

Convento com vista para o rio
A arte está à vista de todos e vai brotando nas ruas de Vila Nova de Cerveira. Outro mural foi colocado na parede do Cineteatro, desta feita de autoria de Juan Domingues, um artista plástico venezuelano, que retrata o artista Henrique Silva, outro importante impulsionador da Bienal.

“Granito-Rítmo”, de Clara Menéres, “Abelcaim”, de Alberto Vieira, “Antártica” e “Girl on the run”, de Zadock Ben-David, são algumas das obras que fazem desta terra uma galeria de arte ao ar livre.

“As Três Marias” na parede
Ainda há muito para por aqui visitar. Na Casa do Artesão, a arte é feita a várias mãos. Trabalhos em vidro, crochet, madeira e couro, pasta de papel… um sem-número de materiais usados que dão origem desde a acessórios de moda a sabonetes de banho. Não podem faltar os comes e bebes e há licores e as compotas para os mais gulosos. Nas traseiras do edifício, Elton Hipólito pintou uma parede em homenagem às “Três Marias”, uma alusão às mulheres do tempo da revolução.

Antes de rumar ao Miradouro do Cervo, não se vai a Cerveira sem provar um “cerveirense”, o doce conventual da vila minhota, feito de uma estaladiça massa que se desfaz na boca…

É com essa delícia na memória que se enfrenta o vento gélido no Alto do Crasto. A paisagem é de tirar o fôlego a qualquer um. São 300 metros de altitude dominados pela escultura O Cervo (veado), em ferro, de José Rodrigues, escultura que remonta à lenda “Cervo Rei”, onde nenhum homem ou animal tomava as “Terras da Cervaria”, local onde a manada, encabeçada por um veado corajoso, conseguia antecipar qualquer ataque e definir uma fuga eficaz.

A cidadania é a finalidade

Espanha e Portugal na paisagem. Ao longe ficam as serras de Arga e de Góis. O rio Minho brilha ao sol. Vê-se a sua passagem por Valença até à foz, em Caminha. Do outro lado, está Tominho (Tomiño), na Galiza. No meio do rio plantadas, as ilhas da Boega e dos Amores. No centro do rio, uma ponte internacional liga os dois países. Se outrora os portugueses defendiam Cerveira dos invasores espanhóis através do Forte de Lovelhe,  agora, a seus pés, a Ponte da Amizade une as duas populações vizinhas.

A dado momento e sem nada combinado, depois de um prazenteiro jantar, tal como se uma ponte se fosse formando, fomo-nos sentando no hall do INATEL Cerveira Hotel. Quando demos conta, estávamos todos em ameno convívio, com récita de poesia e hidromel à mistura. Não faltaram gargalhadas. Durante duas horas esquecemo-nos que só tinham passado três meses. Sentimo-nos amigos. O Vozes de Gaia foi a nossa ponte. A cidadania é a nossa finalidade.

Um novo módulo deste projecto de literacia mediática nos Carvalhos vai ser apresentado na Academia Sénior de Gaia e no InKultu, Instituto de Cultura já nos meses de Dezembro e de Janeiro.  Vai chegar a novos participantes que, como nós, vão sentir o desafio do desconhecido. A eles, deixamos as palavras de José Rodrigues que absorvemos em Vila Nova de Cerveira como exemplo para a nova aventura no Vozes de Gaia:

“Não há pequenas coisas, as pequenas coisas são as grandes, uma luz exata, um gesto preciso…”