Duzentos e seis anos. É há quanto tempo se guarda, em lugar secreto, uma das garrafas mais antigas de que há registo nas caves de Vinho do Porto. Levantamos aqui uma pontinha do véu, como pretexto para lembrar aquele que é o símbolo histórico mais alto de Vila Nova de Gaia.

Era uma vez um pequeno país que, durante o reinado de D. José I (1714-1777), teve como primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo. O Marquês de Pombal, como ficou eternizado. Foi da sua pena que saiu a decisão de fazer do Douro a primeira região de demarcada de vinhos do Mundo. Nascia, assim, o Vinho do Porto, no ano de 1756. O néctar sublime de uma região única e com sabor e textura inigualáveis.

Nas Caves Ferreira, na pequena divisão onde se esconde o tesouro datado do século XVIII quase se sente a presença de D. Antónia, de lamparina fiscalizadora na mão. Ali repousa, longe de olhares curiosos e luzes indiscretas, a joia da coroa: o vinho da colheita de 1815. O mais antigo de que há registo nos arquivos desta casa centenária.

Os vestígios vinícolas desses tempos são considerados raros. Mas existem. Estão guardados a sete chaves, em salas mágicas envoltas em penumbra, húmidas e meio frias, às quais só se chega com permissão especial e depois de uma série de passagens e de labirintos abaixo do nível do leito do Douro. De resto, há funcionários das Caves Ferreira que nunca entraram naquela pequena sala.

A safra de 1815 ganha ainda mais relevância pelo suporte histórico que carrega: em 2015, na comemoração dos 200 anos da Batalha de Waterloo (com a vitória das tropas aliadas luso-britânicas sobre os invasores franceses), houve um leilão na Torre de Londres, no qual foi a licitação um dos exemplares da colheita. O valor da compra suscita algumas interrogações, mas o montante terá andando à volta dos sete mil euros…

Garrafas sem selo de qualidade

O segredo sempre foi a alma do negócio e, por isso, fica por revelar o número exacto de garrafas dessa colheita vintage, que resistem há mais de dois séculos. Muito menos onde estão “escondidas”. Mas elas estão lá e devidamente catalogadas. Quem está de sentinela todos os dias já as conhece de cor, até porque não há uma garrafa igual à outra. “Eram todas feitas à mão”, diz ao Vozes de Gaia Luís Sottomayor, enólogo das Caves Ferreira, propriedade da Sogrape. “Se fosse hoje, não passavam no teste de qualidade da União Europeia”, graceja.

E que histórias têm para contar as “garrafas mais antigas” destas caves? Sabe-se que guardam vinho de um ano de colheita excepcional e pouco mais. Naquele tempo, não havia registos pormenorizados das castas, nem os métodos científicos de hoje para saber se o vinho tinha estofo para ser vintage. Por isso, tinham de ficar em repouso “entre oito a 15 anos” em pipos até ao veredicto final. “A prova era feita… provando”, explica este especialista.

Refira-se que o Clube do Vinho do Porto, numa publicação sobre a história e caracterização do vinho do Porto, apresenta uma listagem dos anos das safras com uma breve descrição onde lê-se sobre a do ano de 1815: “Waterloo Port, um dos grandes vintages do século XIX. Vintage-sensação nas grandes exposições internacionais da segunda metade de Oitocentos, ainda era comercializado nos anos [19]30 do nosso século”.

Ronaldo Neves (texto e fotos)

Nas Caves Ferreira encontram-se alguns dos vinhos mais antigos armazenados nas caves de Vila Nova de Gaia

D. Antónia, uma história de carácter

A Ferreira foi estabelecida no Douro em 1751 por uma família portuguesa de viticultores e comerciantes de vinho da região. A Ferreira é a primeira companhia de Vinho do Porto portuguesa (a maioria das empresas de Vinho do Porto foram fundadas por comerciantes europeus, não portugueses). A história e o percurso da Ferreira estão intrinsecamente ligados à Região Demarcada do Douro (desde 1756) e aos vinhos únicos que a caracterizam.

D. Antónia Adelaide Ferreira assumiu corajosamente a liderança da Ferreira em 1845. Carismática, com uma verdadeira paixão pelo Douro e com uma fantástica visão de futuro. D. Antónia é responsável pela enorme expansão da companhia e determinante na consolidação daqueles que são ainda hoje os valores que definem a marca Ferreira.

“Cada um na sua terra deve fazer tudo que seja para bem da humanidade.”

Dona Antónia A. Ferreira, 12 de Julho de 1855

O início do seculo XX, confirmou Ferreira como uma marca de referência no vinho do Porto e em 1987 passou a integrar o grupo Sogrape, no qual permanece até hoje, dando continuidade ao trabalho da família para o desenvolvimento da marca.

Todos os vinhos, num só local

Para quem quiser conhecer de perto a história do Vinho do Porto, há um local de visita obrigatória: as Caves de Gaia. Lá, estão as marcas mais importantes e o passeio é obrigatório, para turistas nacionais ou estrangeiros. Uma autêntica viagem ao passado e à memória de todos aqueles que ajudaram a construir este marco simbólico da cultura e do espírito mercantil da região do Douro.

Uma das mais relevantes caves são as Calem, que recebe cerca de 313 mil visitantes anuais (valores de 2019, de acordo com a Associação de Exportadores de Vinho do Porto). Da mítica Ramos Pinto, com o seu museu, até à Burmester, a única em Gaia com luz natural e uma corrente de água no interior, passando pela Churchill’s – a primeira produtora fundada e estabelecida no último meio século –, há todo um universo para descobrir.

As marcas de Vinho do Porto estão sob o chapéu da AEVP – Associação das Empresas de Vinho do Porto. Constituída em Janeiro de 1975, representa e promove e defesa da indústria e comércio dos Vinhos do Porto e Douro e outros produtos vínicos da Região Demarcada do Douro em todo o espaço nacional e no estrangeiro.

Nas paredes da sede, em Gaia, claro, pode ver-se um mapa com o registo de todas as colheitas vintage das empresas associadas desde 1900 – neste momento, está em actualização.

Em 2019, revela a AEVP, as visitas às caves atingiram um recorde, com 1,37 milhões de pessoas, mais 8,8 por cento do que em 2018. A pandemia baixou os números, em 2020, nuns incríveis 81,9 por cento! Ou seja, foram 250 363 visitantes (46 704 portugueses, 44 536 espanhóis e 37 151 franceses).

Como degustar

“Devido as suas caracteristicas especiais, o Vinho do Porto deve ser conservado seguindo algumas diretrizes: manter-se num local abrigado da luz, seco e fresco, mas não frio – com excepção dos vinhos do Porto branco e rosé. A temperatura ideal para servir varia com o tipo e a categoria do vinho: rosé a cerca de quatro graus centígrados, branco entre seis a 10, ruby entre 12 e 16; Tawny entre 10 a 14.”

(História do Vinho do Porto, National Geographic, 25/01/2019)

A data

O Dia Internacional do Vinho do Porto comemora-se a 27 de Janeiro, desde 2012, quando o Center for Wine Origins designou esta data para celebrar a importância deste vinho.

Curiosidades

A Cockburn’s tem o armazém mais extenso do quarteirão histórico, com 6518 cascos de vinho; a Poças resiste como empresa familiar desde 1918; a Real Companhia Velha, ou a Royal Oporto Wine Company, é a mais antiga produtora e exportadora de vinhos do Porto (fundada em 1756 por Alvará Régio do rei D. José I); a Kopke, fundada em 1638, é a mais antiga empresa de Vinho do Porto.

Naquele tempo, não havia registos pormenorizados das castas, nem os métodos científicos de hoje para saber se o vinho tinha estofo para ser vintage.